Sunday, August 08, 2004

RACISMO EXISTE EM TODA PARTE, DIZ BISPO NEGRO BRASILEIRO

Hoje, domingo, milhões de pretos, mulatos e pardos brasileiros constituirão talvez a maioria dos participantes nas missas celebradas nas muitas igrejas católicas do país. As mesmas serão, contudo, presididas por uma esmagadora maioria de padres brancos. Também no clero do maior país católico do mundo existe desproporção étnica.
Eis o que referiu, a este propósito, D. JOSÉ MARIA PIRES*, Arcebispo emérito de Paraíba, o primeiro negro a exercer tais funções em terras de Vera Cruz:



 Dom José Maria Pires Dom José Maria Pires

João Pessoa, 28 Jul (Rádio Vaticano) - O racismo e a discriminação existem em toda parte: no governo, no corpo diplomático e na Igreja, onde sacerdotes e bispos negros são uma minoria, afirmou um representante da Igreja Católica.

“É claro que existe um preconceito. Basta ver quantos somos” no número do clero brasileiro, disse o Arcebispo emérito da Paraíba, Dom José Maria Pires. “Nem os próprios embaixadores brasileiros na África são negros” acrescentou.

Entretanto, disse Dom Pires numa entrevista exclusiva publicada segunda-feira no diário “Correio Brasiliense”, “as mudanças estão acontecendo”. Uma grande conquista dos negros (no Brasil) é a implantação das quotas nas universidades” ou um sistema de reserva de um número de vagas em centros educativos públicos para a população de cor, e também indígena, aprovado este ano.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 46% dos 178 milhões de habitantes do país são de ascendência africana. Apenas 2,9% dos graduados nas Universidades são negros.

Na Igreja Católica no Brasil, dos mais de 460 bispos, apenas oito são negros. Além disso, apenas 650 sacerdotes, dos 17.600 existentes no país, são negros, dizem os dados do IBGE, difundidos pelo “Correio Brasiliense”.

“Claro que fui vítima do preconceito. Entretanto não gosto de pensar muito nisso”, assegurou Dom José Maria Pires. “Desde a escola primária, quando fazia alguma coisa que pudesse merecer um castigo, sempre me recordavam que eu era negro, como se existisse uma associação entre a cor e a coisa mal feita. E foi assim durante toda a minha vida. Inclusive depois que me tornei bispo.”

No início de agosto, representantes negros da Igreja debateram, em Goiânia, temas como a discriminação dentro e fora da Igreja, assim como formas de inserir a cultura afro na liturgia católica.

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Entrevista realizada por Orlando Junior e Durval Leal Filho, do Informativo Para'iwa (João Pessoa)

Orlando Junior: Como o senhor observa a situação do negro no Brasil ?
Dom José: O negro sempre foi descriminado e ainda continua sendo! Você vê que o negro tem que lutar muito para ocupar algum lugar na sociedade, e as estatísticas mostram que mesmo lutando, e tendo competência, a média salarial do negro é inferior a do branco. O Brasil continua sendo um país racista!

Orlando Junior: Como o senhor observa esse atual quadro de violência no país ?
Dom José: É uma coisa que preocupa bastante, só que nós não vamos a raiz, agente quer combater violência reforçando o policiamento, isso é uma medida passageira, não acaba com a violência! Onde está a raiz da violência ? Nas injustiças sociais, na fome, no desemprego. Na medida em que se criem condições para que as pessoas não precisem sair do interior e ir para as grandes cidades e que possam continuar vivendo nas suas comunidades, trabalhando e esse trabalho sendo valorizado, então nós estaremos dando um golpe mortal na violência. Mas assim como ela surgiu aos poucos, ela também não vai ser dominada em pouco tempo, é todo um processo que poderá demorar uma geração, pois é um processo que leva tempo para ser superado.

Orlando Junior: O que é mais forte no Brasil, o preconceito social ou o preconceito racial ?
Dom José: Existem as duas coisa, uma, de certo modo, depende da outra. O preconceito social vem dessa situação: o pequeno, o pobre, o que não estudou, esse não vale, a palavra dele não tem importância, então na mediada em que valorizamos a pessoa, independente da sua origem, da sua cor, independente da sua condição social, valorizamos a pessoa, então nós combatemos ao mesmo tempo os dois preconceitos, o racial e o social.

Orlando Junior: Porque o culto à Maria incomoda tanto os protestantes ?
Dom José: Só incomoda aos protestantes que não são verdadeiramente protestantes. Um dos livros que eu mais consulto, quando eu quero escrever alguma coisa sobre Maria, é inscrito por um protestante, da comunidade DEZÊ, porque aqueles protestantes que de fato se debruçam sobre o Evangelho vêm que se nós temos um Salvador, Jesus Cristo, esse Salvador nos veio através de Maria, uma mulher que foi escolhida por Deus para gerar aquele que é o salvador do mundo! Então o fato de Deus ter escolhido uma mulher, para que, do sangue dela, da carne dela, se formasse a humanidade do Redentor, coloca essa mulher numa posição de destaque. Então o culto à Maria já está na Bíblia! "Todas as gerações me proclamarão bem aventurada", disse Maria! Isso é bíblico, é do Evangelho de São Lucas.

Orlando Junior: Vários conflitos religiosos ocorrem no mundo atualmente. São Judeus contra Palestinos e na Irlanda, Católicos contra Protestantes, eu gostaria que o senhor tecesse um comentário a respeito dessa guerrilha santa.
Dom José: Os conflitos não são religiosos, são conflitos sociais, entre classes. Como os Judeus, ou melhor, os Israelenses, conseguiram desenvolvimento material e organizativo superior ao dos Palestinos, eles então querem tomar à terra, querem ser os senhores absolutos dali, de modo que os palestinos sejam sempre subordinados a eles, e os Palestinos não aceitam isso. Então o conflito não é religioso, é sócio-econômico. A mesma coisa acontece na Irlanda, lá o conflito é entre aqueles que são os mais ricos, porque são os que estão ligados à Inglaterra e os mais pobres, adquirindo uma dimensão religiosa, mas que na realidade, o que sustenta o conflito é o poder econômico, porque uns tem e outros não tem, não se reconhece a igualdade de uns e de outros.

Orlando Junior: Saudades da Paraíba ?
Dom José: Olha, eu não digo que tenho saudades, porque a Paraíba está no meu coração, diariamente estou me lembrando da Paraíba e sempre que eu tenho oportunidade eu venho a Paraíba. Então cada vez que eu venho eu recupero aquilo que por acaso tenha ficado um pouco esquecido nos meses em que estive ausente. Então eu continuo me considerando um paraibano nascido em Minas Gerais.

Durval Leal Filho: O senhor trabalha agora como homem de ONG, como o senhor vê esse avanço do terceiro setor e as mudanças sociais que eles estão fazendo nas cidades, nos municípios e nos estados ?
Dom José: Eu acredito muito nessas organizações que são autônomas, não são governamentais, não dependem do governo. São essas organizações que podem criar uma consciência de que é o povo quem muda a situação, não o Governo. Enquanto ficarmos esperando pelo governo, as coisas não mudam. Na medida em que o povo vai se organizando e começa a resolver os seus problemas, toma mesmo essa consciência, aí o Governo ou persegue, mas ele não vai conseguir vencer, ou então ele sente que ali é um caminho e começa a trabalhar. Dou exemplo: o MST, o MST é um movimento que tem mais preocupado o Governo. Celso Furtado disse que foi o maior fato político dos últimos anos, porque enquanto os políticos não conseguem abalar o Governo, o MST fez uma marcha até Brasília e o próprio Presidente da República se sentou à mesa com as lideranças para discutir os problemas. Então, se agricultores organizados conseguem sacudir o poder, o que não conseguirão essas outras ONG's na medida em que elas se intercomunicam, se unem e lutam por uma causa comum, que é o combate a fome, a pobreza, a doença, ao subdesenvolvimento. Cabe muito a essas organizações criar uma alma nova, uma consciência nova, uma consciência crítica em nosso país!


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*José Maria Pires nasceu em 1919. Foi ordenado sacerdote na Catedral Diamantina em 1941. Bispo de Aruçaí - MG, de 1957 a 1965, participou do Concílio Ecumênico do Vaticano II (62 a 65).
Arcebispo metropolitano da Paraíba de 1966 a 1995, integrou a Comissão Central da CNBB, bem como a Delegação Brasileira às Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medelin (68) e Santo Domingo (92).
Em 89, representou a CNBB na Quarta Conferência Mudial das Religiões para a Paz, em Melbourne (Austrália). Membro do Departamento de Comunicações Sociais do Conselho Episcopal Latino-Americano, é Arcebispo Emérico da Paraíba desde novembro de 1995.
Actualmente, vive retirado em Belo Horizonte, na Comunidade do
Caminho Novo e está ao serviço de uma paróquia.

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